Abstract
O sistema político brasileiro preenche, formalmente, os requisitos mínimos de uma
poliarquia, ou seja, um sistema democrático em que o poder é atribuído com base em eleições
livres e em que há ampla participação política e concorrência pelos cargos eletivos. Esse sistema
implica disputa pelo poder, tolerância à diversidade de opiniões e oposição política.
No entanto, o que se percebe na sociedade é que essa estrutura formal não garante a
democratização dos recursos socialmente produzidos, como bens, direitos e serviços básicos
proporcionados pelo Estado. Assim, destaca-se que a questão democrática vai além do
estabelecimento das regras formais que caracterizam esse tipo de regime. É necessário retomar
o conteúdo social da democracia e ampliar os direitos de cidadania para reduzir a distância entre
as esferas formal e real1
; afinal, a cidadania plena é condição indispensável para a concretização
dos direitos humanos.
A estruturação dos direitos de cidadania no Brasil esteve constantemente vinculada aos
interesses das elites socioeconômicas e políticas; poucas vezes foi resultado de um projeto com
ampla participação política e voltada para a inclusão social. Com base nessa constatação, o
historiador José Murilo de Carvalho 2 desenvolveu uma teoria de que vivemos em uma
“estadania”, pois muitos de nossos direitos seriam resultantes de uma “concessão” relativa do
Estado, feita de cima para baixo a uma população muitas vezes desinteressada da “coisa
pública”. Dessa forma, os direitos costumam ser vistos como concessões ou benefícios
oferecidos pelos grupos dominantes ao restante da população.
Ainda de acordo com o autor, a construção da cidadania no Brasil inverteu a ordem
cronológica apontada por T. H. Marshall, uma vez que primeiro foram estabelecidos os direitos
sociais e ampliados os direitos políticos, durante o período ditatorial do Estado Novo, para
depois serem implementados os direitos civis, o que gerou a formação de uma pirâmide
invertida dos direitos.
Já o cientista político carioca Wanderley Guilherme dos Santos utiliza o conceito de
“cidadania regulada” para identificar a concessão dos direitos por parte do Estado como
maneira de mediar possíveis conflitos entre classes. Nesse caso, o Estado controlaria os grupos
sociais por meio de práticas regulatórias, que variam entre o aumento da participação
(proporção de indivíduos que possuem acesso aos direitos) e a redução da liberalização
(capacidade das instituições sociais de garantir a consolidação dos direitos). Aqui, o governo
Vargas deve ser mencionado, uma vez que Santos cita, como políticas desse período, a criação
das leis trabalhistas e o controle dos sindicatos. Como consequência, a classe trabalhadora
conquistou direitos, mas perdeu poder de contestação.
No entanto, identifica-se na história do Brasil alguns momentos em que as mobilizações
políticas ganharam destaque, em geral tendo como referência a luta por direitos sociais e
liberdade. Com base em um conjunto de práticas repressivas, a ditadura militar, iniciada em
1964, impôs um retrocesso à construção da democracia e dos direitos humanos no país. E foi
então que movimentos populares e sindicais do campo e da cidade passaram a exigir
distribuição justa dos bens produzidos pelo trabalho e maior participação social nas decisões
sobre os rumos adotados pelo país.
Além disso, foi pela resistência à ditadura e durante a redemocratização formal do Brasil
que diversos grupos se fortaleceram para as lutas subsequentes em prol dos direitos humanos.
Em meio ao processo de redemocratização, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, que
contou com destacada participação social em sua elaboração e incorporou diversas
reivindicações populares, sobretudo no campo das liberdades civis e políticas.
A constituição brasileira estabelece alguns mecanismos de participação política, como
o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (artigo 14), para garantir, ao menos no âmbito
formal, a democracia participativa. Outro exemplo é o orçamento participativo, modelo em que
os cidadãos, por meio de uma complexa ferramenta de gestão pública, participam da elaboração
e da fiscalização do orçamento, principal instrumento de distribuição dos recursos públicos.
Outro momento de mobilização política de nossa história recente foram as jornadas de
junho, que aconteceram em 2013, nas quais parte da população saiu às ruas para lutar pela
efetivação de alguns direitos, como transporte público de qualidade e gratuito, e para questionar
o funcionamento da democracia.
A socióloga fluminense Maria Victoria Benevides chama de democracia semidireta as
formulações institucionais firmadas pela Constituição de 1988. O objetivo do modelo
participativo de democracia proposto pela Constituição não é “substituir” o sistema
representativo, mas possibilitar a conscientização social, essencial para a efetivação da cidadania, que só é possível com uma participação política permanente, plena e ativa de todos
os cidadãos. Contudo, a Constituição ainda apresenta muitas limitações, em especial no que se
refere às dimensões social e econômica. Nessas dimensões residem os principais obstáculos à
construção e à concretização dos direitos humanos e da cidadania na vida social brasileira.
Na verdade, há grande diferença entre a cidadania formal e a cidadania real no Brasil.
A cidadania formal é a que está presente nas leis, imprescindível para a liberdade e para as
garantias individuais; sem ela, estaríamos à mercê da vontade de qualquer grupo dominante.
Ou seja, ela garante igualdade de todos perante a lei. Já a cidadania real, aquela do dia a dia,
mostra justamente o contrário, isto é, que não existe igualdade entre os seres humanos e que
prevalece a desigualdade em todas as dimensões da sociedade.
Apesar da luta de diferentes setores da sociedade, principalmente aqueles ligados às
minorias sociais, no dia a dia percebemos que a maioria da população tem seus direitos
desrespeitados. Portanto, apesar de existirem formalmente, a democracia, a cidadania e os
direitos ainda são bastante restritos. Podemos dizer que o Brasil é uma democracia em
construção, em todos os sentidos. O rumo e o alcance que ela terá vão depender da participação
da população brasileira, em especial da juventude, nas lutas pela implantação dos direitos
humanos para todos os cidadãos.