Abstract
‘Injustiça epistêmica’ é o termo usado por Miranda Fricker para descrever um tipo de injustiça que ocorre quando excluímos a contribuição de uma ou mais pessoas à produção, disseminação e manutenção do conhecimento. Em seu livro de mesmo nome (2007), e em uma série de outros trabalhos, Fricker examina de que modo interações interpessoais e sistemas sociais estruturais podem ser responsáveis por influenciar nossa prática cotidiana, consciente ou não, de atribuir status epistêmico a membros de uma comunidade. Seu trabalho se insere em um campo particular da epistemologia contemporânea, conhecido como Epistemologia Social. Um ramo do trabalho filosófico que tem como objetivo uma investigação sobre a dimensão social e sobre a moralidade das nossas práticas epistêmicas, do ponto de vista da sua influência na aquisição de conhecimento e
justificação, e da formação racional de crenças. Fricker aporta neste campo com um tratamento do papel que a injustiça de tipo epistêmico desempenha nessas atividades. E ela o faz, particularmente, através do exame de duas formas primárias deste tipo de injustiça: a injustiça testemunhal e a injustiça hermenêutica. Sua proposta consiste, em larga medida, em mostrar que algumas das normas que governam as nossas práticas epistêmicas podem ser limitadas por estruturas de poder que se manifestam socialmente. De acordo com essa proposta, a concepção do sujeito conhecedor é essencialmente social, no sentido em que ela está sujeita a inúmeras considerações sociopolíticas. Uma dessas considerações está na possibilidade de pressões sociais advindas de relações de poder
exercerem alguma influência nas normas epistêmicas de credibilidade que utilizamos para avaliar a autoridade racional de interlocutores em uma troca epistêmica cotidiana. Segundo Fricker, é possível que as normas que regulam a concessão de credibilidade a indivíduos ou grupos envolvidos nessas trocas reproduzam estruturas de poder constituídas socialmente. Ou seja, é possível que pessoas ou grupos que detêm algum tipo de vantagem ou poder social tendam a negar credibilidade a agentes
epistêmicos que possuem autoridade racional de fato acerca de determinado assunto. Uma recusa em reconhecer tal autoridade por conta de preconceitos identitários é um dos modos de conceber o que
Fricker chama de injustiça epistêmica. Neste artigo, pretendo apresentar alguns detalhes da proposta
de Fricker, caracterizando mais cuidadosamente os dois tipos de injustiças que ela examina em seu trabalho principal e apresentando algumas das soluções que ela oferece como estratégias para dirimir as consequências supostamente perniciosas de práticas epistêmicas reguladas por preconceitos de identidade e pela exclusão de agentes de aspectos importantes de uma comunidade epistêmica. Em seguida, discutirei duas críticas mais pontuais às soluções que Fricker oferece, que surgem menos como objeções, no sentido mais forte do termo, e mais como contribuições adicionais a essas estratégias de remediação dos danos de uma prática epistêmica injusta. Particularmente, quero
defender que as duas contribuições que apresentarei podem ser pensadas como frutos da mesma preocupação com o escopo estreito da proposta de Fricker, e podem ser pensadas também como oferecendo leituras complementares sobre que caminhos devemos seguir para buscar práticas e comunidades epistêmicas marcadas pela justiça e não pela injustiça.