Abstract
Estamos cansados das utopias.
Estamos cansados das utopias literárias e dos devaneios sobre a Cidade ideal: as utopias
em ação que foram os totalitarismos do século XX nos nausearam. Os horrores reais de uns nos
impedem de sonhar com os outros.
Nossas antigas utopias
De Platão a Thomas More, de Étienne Cabet a Fourier, as utopias falavam da rejeição
do presente e do real: “Existe o mal na comunidade dos homens”. Mas não lhe contrapunham
o futuro nem o possível; elas descreviam um impossível desejável: “Seria bom viver lá!”. Não
eram programas políticos planejando meios de atingir um objetivo racional. Contentavam-se
em querer o melhor. E mais valia o Bem nunca obtido a um Mal menor amanhã. As utopias
eram revolucionárias, mas em palavras: “Os homens vivem assim, sempre viveram assim,
deveriam viver de outra forma”. Todas as utopias comunistas do século XIX foram assim.
Quando se tratava de arregaçar as mangas, havia um esforço para criar à distância, e durante um certo período, uma pequena comunidade real mais ou menos em conformidade com o sonho.
Os utopistas eram revolucionários quando não eram realistas, e quando eram realistas não eram
revolucionários. Nunca visaram a eliminar o Mal para sempre e derrubar as comunidades
políticas existentes para instaurar o Bem. Por exemplo, Étienne Cabet, com seu comunismo
cristão, imaginou a cidade ideal de Icária e tentou fundar uma colônia icariana em New Orleans,
em 1847. Charles Fourier, com seu falanstério, estava em busca de uma harmonia universal que
se formaria livremente por afeição de seus membros. O mais realista de todos, Saint-Simon,
descreveu uma sociedade fraterna, cujos membros mais competentes (industriais, cientistas,
artistas, intelectuais, engenheiros) tinham a tarefa de administrar a França da forma mais
econômica possível, a fim de torná-la um país próspero, onde reinariam o interesse geral e o
bem comum, a liberdade, a igualdade e a paz; a sociedade seria uma grande fábrica. Mas o
sonho de uma associação entre industriais e operários baseada na fraternidade, na estima e na
confiança desfez-se na realidade das grandes empresas capitalistas dos saint-simonianos, no
Canal de Suez e nos caminhos de ferro franceses.
No fundo, aconteceu o mesmo com os teóricos do "comunismo científico" no século
XIX, Karl Marx e Friedrich Engels. Eles, é claro, eram autenticamente revolucionários e
profundamente realistas, pois fundamentaram seu projeto político em uma análise do
funcionamento econômico e histórico do capitalismo, mas a ideia comunista e a abolição da
propriedade privada permaneceram em estado de esboço nas obras dos autores do Manifesto,
um ideal abstrato e, por assim dizer, vazio, ou, em todo caso, tão utópico quanto nos teóricos
franceses. Nos Manuscritos de 1844, a ideia comunista é pura especulação conceitual em torno
da "apropriação real da essência humana pelo homem e para o homem" ou "a verdadeira solução
da luta entre existência e essência, entre objetivação e afirmação de si mesmo, entre liberdade
e necessidade". Em A ideologia alemã, é uma expressão puramente verbal para designar "o
movimento real que abole a ordem estabelecida". Em Engels, é "o ensinamento das condições
da libertação do proletariado" (Princípios do comunismo). E uma ideia até mais vaga e abstrata
nos marxistas do que nos utopistas, pois é dissociada de qualquer tentativa de fundamentação
conceitual e qualquer análise concreta dos meios de sua realização. E ainda como um sonho de
Cidade ideal, em que "cada um recebe conforme suas necessidades", como circulava entre os
utopistas franceses do comunismo no século XIX.
Ao contrário de suas predecessoras, as utopias em ação dos totalitarismos do século XX
situam-se no cruzamento de um ideal revolucionário ("partir ao meio a História do mundo",
segundo Nietzsche em Ecce homo, depois retomado pelos maoístas) e um programa realista de
transformação política radical. Enquanto as utopias de Platão a Engels evitavam os meios de se
atingir o ideal para preservar sua perfeição, as utopias em ação fazem o inverso: retardam
indefinidamente a realização do ideal para empregar da melhor forma os meios capazes de
realizá-lo. Não é mais uma questão de sonhar com o Bem, mas de lutar indefinidamente contra
o Mal. E, desde a República de Platão,5 o Mal na comunidade política tem duas faces: ou é
Impuro ou Desigual. Portanto, a Cidade deve ser: ou uma comunidade de iguais, cuja unidade perfeita é garantida pelo fato de que tudo é comum entre eles; ou uma comunidade pura, cuja
unidade perfeita é garantida pelo fato de que todos têm a mesma origem. Define-se ou pelo
comum das posses (nada deve pertencer a ninguém, mas a todos) ou pela identidade dos seres
(ninguém deve ser estrangeiro): o comum que temos (ou deveríamos ter) ou aquilo que somos
(ou deveríamos ser). Naturalmente, nessa união de idealismo revolucionário e realismo
programático, o Bem absoluto, o Puro, o Comum, é uma idealidade fora de alcance: o combate
mortal contra o Mal torna-se a obsessão dos regimes de terror.
O Puro deve começar excluindo. Mas nunca chega a excluir por completo, porque o já
purificado nunca é suficientemente puro. A ponto de a ideia se transformar em um delírio
infinito de rechaçar e depois expulsar, a fim de exterminar. Os judeus e os ciganos, que
encarnavam o micróbio maléfico que ameaça a pureza da raça e do sangue ariano, tinham de
ser caçados até nos mais ínfimos recantos do território sob domínio nazista e eliminados como
pulgas.
O Comum e o comunismo também estão fora de alcance. Começa-se expropriando. Mas
ainda há a propriedade e o privado. E, portanto, nunca se chega a expropriar, despossuir,
comunizar por completo. As lutas contra as classes (supostamente) proprietárias ou avessas à
coletivização, os pequenos proprietários de terra, geram deportações em massa
(deskulakização) ou organização sistemática de grandes fomes (Holodomor). Por isso, apesar
da formidável esperança de emancipação que o ideal comunista representou durante quase um
século para as classes ou povos explorados do mundo inteiro, ele se despedaçou no século XX
contra o muro do "socialismo real". Nos antípodas do comunismo imaginado, ao qual se
supunha que conduziria infalivelmente, o ideal comunista se transformou em uma máquina
tirânica, burocrática e totalitária. A sociedade sem Estado sugerida por Engels na obra Anti-
Dühring6
tornou-se seu contrário, uma ditadura do Estado contra a sociedade. O terrível
fracasso dessa utopia em ação destruiu os sonhos de libertação coletiva — enquanto "a
exploração do homem pelo homem" continua indo muito bem. Infelizmente, não se pode dizer
o mesmo das utopias revolucionárias em nome do Puro. Enquanto o ideal comunista quase
desapareceu dos programas políticos, a ideologia purista do sangue e da raça, a ilusão da origem
comum (seja biológica ou religiosa) e, portanto, o ódio destruidor do estrangeiro continuam a
alimentar as utopias coletivas e seus massacres em série: genocídio ruandês contra os tutsis,
depuração étnica dos muçulmanos na ex-lugoslávia (em particular na Bósnia), limpeza étnica
de cristãos, turcomanos xiitas e no autoproclamado "Estado islâmico" etc.
O fim das utopias?
Felizmente, parece que somos poupados de tudo isso em nossas "democracias
ocidentais", após setenta anos de paz sob as asas da Europa, algumas décadas de relativa prosperidade econômica e tranquilidade política sob a frágil proteção de nossos sistemas
representativos. Não acreditamos mais na salvação comum. Nem na salvação nem no comum.
Há três razões para isso, todas as três interligadas: o fim do político, a desconfiança em
relação ao Bem, o reino dos direitos individuais.
As utopias políticas conduziram ao desastre. Não conseguem mais nos fazer sonhar com
o futuro como faziam no passado, porque estamos absorvidos por nosso hoje e por nós mesmos.
A política parece ter derrotado o político. A política são estratégias coletivas ou táticas
individuais, é o império dos "eles" ou o reino dos "eus". O político é a afirmação da existência
de um "nós" ("nós, o povo"), além das comunidades de famílias ou amigos, das comunidades
regionais ou religiosas, além das identidades de gênero ou origem, e aquém da comunidade
humana em geral. As peripécias usuais dos governos representativos sufocaram o sentimento
de pertencimento coletivo e a aspiração a um destino comum, que ressurgem apenas quando
uma emoção violenta abala o corpo social, quando existe uma ameaça extremista ou ocorre um
atentado terrorista. Em situações normais, porém, os acasos da conquista ou do exercício do
poder escondem o político, isto é, as condições de unidade da comunidade.
Não acreditamos mais no Bem. Não sonhamos mais com uma Cidade bondosa,
finalmente livre do Mal. Aspiramos simplesmente a uma sociedade — ou um mundo — menos
má. Prova dessas aspirações são as manifestações que mobilizam a juventude dos países
ocidentais ou sublevam os povos do planeta de vez em quando. Movimentos altermundialistas
contra o capitalismo financeiro, Fórum Social Mundial (Porto Alegre), Occupy Wall Street,
Indignados, Nuit Debout etc. Movimentos a favor da democracia nos países da Europa do Sul
nos anos 1970, na América Latina e, em outros continentes, lutas de emancipação na praça da
Paz Celestial (Pequim), na praça Tahrir (no Cairo), na praça Taksim (Istambul), de Sidi Bouzid
(Tunísia), revolução dos guarda-chuvas (Hong Kong) etc. Apesar da diversidade de contextos
e objetivos, em todas essas revoltas há uma constante que as distingue das utopias
revolucionárias passadas: as pessoas se revoltam contra alguma coisa, elas não se mobilizam
por alguma coisa. Sabemos o que elas rejeitam (injustiça, miséria, corrupção, humilhação,
arbitrariedade, segregação e repressão), mas desconhecemos a que aspiram. Ou melhor, é como
se tudo que desejassem fosse justamente um "menos" — menos injustiça, menos miséria, menos
arbitrariedade, menos corrupção, menos segregação, menos repressão etc. —, ou o menos
possível, mas nunca o impossível de um horizonte coletivo. Os que almejam em todo o mundo
derrubar um poder tirânico ainda sonham com essa nossa "democracia" que não nos encanta
mais, porque acreditamos que as liberdades fundamentais em que ela consiste são para sempre
e ela se resume a votarmos esporadicamente em políticas que não nos satisfarão. Pois quando
não há mais nada contra o que se revoltar, restam apenas motivos para reivindicar. Contudo,
ninguém mais sonha com uma Cidade perfeita: nem os que protestam contra sua miséria e
servidão nem os que lutam por condições de vida decentes e pela satisfação de seus interesses.
Não há mais utopia política.
Foi assim que se instalou entre nós o reino dos direitos individuais. Pois não desejamos
mais um Estado ideal que nos una e nos faça um nós, um nós inédito, um nós que seja um nós
mesmos: esperamos somente que esse Estado nos deixe em paz, cada um por si, e nos permita
realizar as aspirações individuais a que acreditamos ter direito. O sonho de emancipação coletiva se estilhaçou em uma multiplicidade dispersa de desejos. Podemos indicar a data
recente em que esse "nós" considerado poderoso demais começou a se encolher em "eus"
triunfantes. Quando esses "eus" ainda usavam a máscara do antigo "nós" para se legitimar. No
último terço do século XX, as reivindicações individualistas ainda tinham uma coloração
revolucionária; as pessoas não sonhavam mais com a libertação de uma classe ou de um povo,
mas ainda sonhavam com uma libertação política: a dos desejos individuais. O ideal proletário
adquiriu um matiz libertário: foram os movimentos de "Maio de 68". O conceito de revolução
recuava na história social e progredia nos costumes. Nesses movimentos dos países capitalistas
ocidentais, as pessoas acreditavam, apoiavam, afirmavam em textos e discursos que tudo na
vida de cada um era político por natureza, para além da própria política. O amor era político:
elas acreditavam que as relações entre homens e mulheres, os sentimentos, a sexualidade eram
determinados pela existência social — logo eram políticos. A arte também era política: a arte
falsa era a arte reacionária, a música tonal, a pintura figurativa, o romance ou o cinema
narrativos etc. A "verdadeira arte" era a das vanguardas, revolucionária na forma e messiânica
no conteúdo. A moral, por sua vez, era política de um extremo a outro. Ou então era oca,
ridícula. (Isso foi antes de tudo virar ética.) Este era o programa: libertação coletiva das
aspirações individuais, "viver sem tempo morto e gozar sem obstáculos".
Desde o início do século XXI, não existe mais utopia política. Nem sonhos de libertação
social; ela se despedaçou contra o muro da realidade totalitária: de suas esperanças restam
apenas algumas conquistas, cada vez mais frágeis, do Estado providência. Nem sonhos de
realização libertária; eles se chocaram contra o fim das ilusões e o retorno do conservadorismo.
Dos primeiros e dos segundos sobrou apenas o império dos direitos. A era do indivíduo não
precisa mais se abrigar sob a ideologia da libertação: o vocabulário liberal dos direitos
subjetivos é suficiente.
De fato, os direitos individuais, na esteira e conforme o modelo muitas vezes infiel dos
"direitos humanos", tornaram-se nosso único ideal, depois que perdemos a fé no Ideal. Pois a
ideia de "direitos humanos" é a dupla negação de toda utopia política: porque se trata de
"direitos" e porque se trata de "humanos".
Cópia de: FRANCIS WOLFF. Três Utopias Contemporâneas. São Paulo: Unesp, 2018.